73 #septuagésimo
terceiro gole
 
 
segunda-feira, 19 de junho / 14h 
 
_ deus. deus. deus. deus.
achei que repetindo várias vezes o seu nome, a chance dele ouvir seria maior. 
levantei os braços e senti o choro escorrendo pelo meu rosto. fiquei pensando se a tomografia conseguiria ver meu pulmão enquanto eu soluçava de tristeza.
_como será que as lágrimas aparecem em um exame de imagem?
 
uma voz automática da máquina disse: - puxe o ar pelo pulmão e segure. 
senti um rasgo na lateral do peito descendo até o quadril. 
- solte o ar. 
alguma coisa não estava certa. comecei a fazer meu epitáfio deitada no aparelho, repetindo pra mim mesma que não poderia esquecer de dizer para as minhas irmãs usarem todo o dinheiro que eu guardei, para viajar. _ gastem tudo, tem bastante coisa lá, viajem o mundo. 
 
o exame acabou e eu pedi ajuda ao técnico da sala pra me levantar. 
_é que sinto muita dor. 
eu levantei e ele pediu para que eu aguardasse numa cadeira de rodas.
_por quê? eu consigo seguir andando. 
- não senhora, melhor você sentar e só se levantar quando te levarmos até a sala do médico, por favor.
 
presumi que o que ele vira na tomografia não era bom.
olhei pra minha irmã como se olham os olhares de quem não entende como 2 dias atrás estávamos caminhando em uma vinícola e agora, de repente, eu não poderia me levantar de uma cadeira de rodas.
 
nesse meio tempo, saiu o resultado do meu hemograma feito algumas horas atrás. digitei no google _qual exame detecta coágulo no pulmão, e lá apareceu que era um tal de dimero. nunca ouvira falar. mas o médico tinha pedido isso no meu exame. de acordo com o google, pra não ter coágulo o dimero tem que estar em até 500 ng/ml. o meu estava em 740 ng/ml. cacete. coágulo no pulmão?
 
me levaram pra um corredor longo até a sala do pronto socorro onde estava o médico que me atendeu.
- senhora, pelo seu dimero e tomografia, confirmada embolia pulmonar causada por anticoncepcional agravada por um quadro viral de gripe. vamos te internar na UTI. 
 
voltando um pouco no tempo.
2 meses e meio atrás
 
fui a um ginecologista pra tentar regular meu ciclo menstrual, que por vezes ficava meses sem vir. ele sugeriu anticoncepcional e eu fiz ressalvas de que não tomava porque tinha medo de trombose. - mas a chance é mínima, 1% praticamente. e ele vai regular seu ciclo e melhorar sua pele. faz o teste, toma por 3 meses. 
comecei a tomar ressabiada, jurei a mim mesma que seriam apenas 3 meses.
a vida seguiu, e 2 meses e meio depois, aconteceu comigo o que acontece com 1% das pessoas. 
 
quarta-feira, 14 de junho / 12h
 
fui almoçar com carol e pavan num restaurante gostosinho perto de casa.
demos risadas, dividimos comidinhas e por vezes espirrei e assoei o nariz.
_acho que tô com um começo de gripe, disse a eles. 
no dia seguinte, peguei estrada com a minha irmã pra são joão da boa vista. fomos a um encontro de família que envolvia conhecer vinícolas na serra de mantiqueira, e curtir uma saudade juntos.
minha congestão nasal ficou um pouco mais forte e os quatro dias que passamos juntos foram comigo assoando o nariz a cada 10 minutos. 
_cacete de gripe, onde foi que eu peguei isso. 
 
domingo, 18 de junho / 9h
 
acordei no nosso último dia em são joão da boa vista com uma dor no braço. parecia dor muscular. o tempo estava frio. _acho que dormi de mau jeito. 
me despedi dos parentes e peguei estrada de volta pra são paulo.
passei o dia meio incomodada, segui desarrumando mala e fazendo as coisas de casa. a dor ficava pior ao respirar e rasgava na altura do começo do pulmão. - não quer dar um pulo no hospital?, sugeriu minha irmã. _imagina, ir ao hospital por causa de dor muscular? não tem necessidade, vai melhorar. 
dormi naquele domingo e acordei meia-noite com muita dor embaixo do peito. resolvi tomar um advil e pegar no sono de novo. 
 
segunda-feira, 19 de junho / 7h 
 
despertei na segunda-feira com dor ainda, mas certa de que conseguiria vencer aquele dia. - acho melhor você ir ao hospital, insistiu minha irmã (e nunca vou esquecer do que fez por mim me convencendo a ir pra lá). 
eu moro em frente a um hospital. atravessei a rua e cheguei ao pronto socorro. _oi doutor, tô com uma dor embaixo do peito, acho que dormi de mau jeito. 
ele me examinou, entendeu onde era a dor e perguntou: - você toma anticoncepcional?
(eu nem lembrava que eu tomava isso) 
_ tomo, há 2 meses e meio só. 
- hummm…..
_mas eu tô com uma gripe, pode ser pneumonia? 
- na verdade pode ser uma TEP, uma embolia pulmonar causada pelo remédio, que agravou por conta da gripe.
_ como?
- fica calma, eu vou pedir uns exames. 
 
minha irmã chegou ao hospital e até então toda aquela conversa com o médico parecia o absurdo dos absurdos até se confirmar no hemograma e na tomografia do tórax. digitei embolia pulmonar no google. e tudo o que tinha lá se referia à morte súbida, à coagulos se mexendo no corpo e a grandes chances de tudo se agravar se não for socorrida a tempo. 
 
- vamos te internar na UTI.
 
larissa ligou pra minha outra irmã, natali, que mora em araçatuba. era melhor dar a notícia pra ela primeiro e ela contar pessoalmente pros nossos pais, que também moram lá. natali é nosso guru. na hora ela organizou pro meu cunhado trazer meus pais pra são paulo e eu nunca vi alguém chegar tão rápido de araçatuba quanto meus pais naquele dia. foi a única vez que araçatuba ficou perto daqui. 
 
chorei copiosamente com a decisão do médico de me levar pra UTI. é muito estranho você estar consciente, na frente do médico, ouvindo ele organizar com a burocracia do hospital a sua ida pra UTI. meu medo era não conseguir me despedir das pessoas. eu sempre quis me despedir antes de morrer. 
 
pois o médico repensou a decisão e disse que por eu estar com os sinais estáveis, poderíamos tentar tratar num quarto de internação comum. 
 
e eu já não sabia o que era melhor, eu só não queria morrer sem dar tchau. 
 
me levaram para um quarto. 
 
segunda-feira, 19 de junho / 17h 
 
na veia, aplicaram dipirona e tramal pra dor. achei que não adiantou. esperava mais do tramal. a fama não condiz com o que entrega. 
às 17h, deitava na cama do leito, a enfermeira chegou com a primeira injeção de anticoagulante para aplicar na barriga. e eu tinha tanta dor que não pensava em mais nada, só levantei a blusa e agradeci a deus por existir remédio. _ a medicina é maravilhosa. 
 
naquela noite, minha irmã que ficou comigo no hospital disse que não dormiu porque ficou rezando pro coágulo não se movimentar pelo meu corpo.
na manhã seguinte, minha mãe chegou ao hospital. e chegou também um monte de amor e mensagens bonitas no celular. 
uma médica passou no quarto. disse que tive a sorte daquele ser um coágulo pequeno e que, dentre os casos todos, o meu foi considerado de nível leve. não tinha afetado outro órgão. foi um pequeno infarto em uma veia do pulmão que deu a dor e a dor me salvou. porque sem dor, eu teria morrido em casa mesmo. 
 
a explicação de tudo foi que a gripe forte deixou o pulmão mais fraco, e o veneno do anticoncepcional fez seu efeito adverso. 
 
enquanto a médica me explicava as coisas todas, me senti a pessoa mais sortuda do mundo.
larissa me salvou me obrigando a ir pro hospital.
o médico do pronto socorro, cansado, poderia ter me dado um antiflamatório e me mandado pra casa. mas ele pediu uma tomografia e me salvou também. 
 
nesse processo todo, fiquei pensando também que os pais da gente não tem paz. deus me livre ter filhos. 
meus pais vieram correndo há 550 km de distância. e então me vi com meu pai, com 70 anos, dentro do quarto do hospital, cortando a carne do almoço pra mim. _eu não sei o que pode existir além da família. 
 
três dias depois de internação, eu tive alta. a médica deu corticóide pra dor (esse sim, obrigada) e anticoagulante oral pra tomar por um tempo.  
 
hoje, voltei pro escritório. devagarzinho, sem muitas agitações, mas já conseguindo coordenar as coisas. molhar as plantas. organizar os e-mails.
não tenho mais dor, e tive minha mãe por uma semana em casa curando e abraçando todo nosso emocional. obrigada mãe, por ser tudo na nossa vida.  
 
vencemos. tô viva.
obrigada, de todo meu coração, a todos os distantes e próximos (percebi que tenho muitos) que escreveram preocupados. 
  
de tudo isso. eu tenho 3 coisas pra falar pra vocês: 
_mulheres, não tomem anticoncepcional em hipótese alguma (pelo amor de deus alguém precisa colar essa mensagem em cartazes do mundo) 
 
_ nunca se esqueça de que é a família quem vai te dar banho no hospital, e vai sair da onde estiver pra ficar ao seu lado.
 
_seja gentil com as suas cicatrizes. lembro quando a minha irmã, anos atrás, tirou um melanoma das costas e ficou com uma cicatriz que no começo a incomodava muito, achava feia, mas que depois de uns anos, ela já não se importava nenhum pouco com ela. 
hoje eu entendo. porque disseram que, depois da embolia, eu levarei pra sempre uma pequena cicatriz no meu pulmão. uma marquinha dizendo que, um dia, ela sinalizou algo pra mim. 
 
minha cicatriz. meu grande milagre. 
 
Fiquem bem <3 
 
Todos os goles passados estão disponíveis para leitura lá:  www.claravanali.com.br 
Em especial, você pode gostar do gole 59. 
 
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Um beijo,
Volto logo.
 
 
 
Um rascunho perdido
(mensagens trocadas com minha irmã Natali, enquanto eu estava no hospital)
 
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Clara Vanali

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Sobre
 
Sou jornalista de formação, tenho uma produtora de vídeos como ocupação, e aqui, nestes goles, eu apenas escrevo. 
 Prazer, Clara Vanali ;)