19 #décimo 
nono gole
 
Oi, tudo bem com vocês?
Vamos pro décimo nono gole? 
 
Quarenta anos atrás minha mãe quebrou o pé descendo uma escada que tinha na casa da minha avó, onde ela morava, lá em Catanduva. Na época, ela operou, colocou pinos, ficou muitos dias de cama, se recuperou e viveu sua vida sem se lembrar que dois parafusos foram, a partir daquele momento, incorporados aos seus ossos do pé. O fato é que, há alguns anos, por conta dessa queda, e talvez pela forma como os ossos se colaram, um ossinho começou a formar uma espécie de calo no peito do pé, trazendo muita dor e obrigando minha mãe a pensar de novo em cirurgia. Só que desta vez ela não tinha mais os 20 anos como na primeira vez, e sim 60.
 
Pois então lá foi ela, há 1 mês e meio. Encarou mais uma cirurgia ortopédica bruta que tirou a calcificação que estava se formando e acrescentou mais alguns pinos para que tudo cole no lugar novamente. A recuperação, no entanto, é chata. Ainda não dá pra sair percorrendo este mundão. Ela não pode apoiar este pé no chão por 60 dias, e depois disso vamos avaliar se vai precisar de fisioterapia ou não. 
 
As coisas tem caminhado bem, um dia por vez. Mas é trampo, bicho. Minha mãe não é gente como a gente. Ela não para. Não faz o estilo que fica deitada na cama o dia todo esperando o pé sarar. Ela é o centro da nossa casa, das milhares de plantas que coordena, e de toda uma áurea que se ilumina por onde ela passa e coloca seu trabalho e amor. Ela dispensou a cadeira de rodas, e vai com o andador pra cima e pra baixo, pulando de um pé só (tente você ficar pulando de um pé só pra ver se os braços aguentam) e assim continua cozinhando, administrando e pedindo calma pra que a vida não passe tão depressa - pois há muitos dias, vinhos, viagens e lugares que ela ainda precisa visitar. E vai. Só aquieta o coração, mãe. Dias de luta. Dias de glória. 
 
Por um lado, eu não posso deixar de me emocionar com esse processo. Minha mãe não reclama, absorve o sofrimento em silêncio e internamente compreende que nem sempre são tempos de colheita…às vezes são dias da gente apenas se manter saudável, depender dos outros (pra andar, tomar banho, se movimentar) e esperar até que o nosso corpo retorne. Vocês já tiveram essa vivência? De espera. Nem tudo é corrida maluca. Nem todo prazo é pra ontem. Há épocas da vida em que a gente tem só que pedir licença mesmo e avisar que volta daqui a pouco. 
 
Essa foto da newsletter reflete exatamente este momento. Minha mãe em seu período de pausa, almejando tudo. No lugar em que ela se sente melhor. No rancho. Com as plantas, amoras, orquídeas, jabuticabas e pés de mamão. Tudo o que ela construiu desde a semente. A natureza. Ansiosa pelo seu retorno. E nós, sua família, andando ao seu lado até uma nova fase começar. 
A gente chega lá. 
 
Fiquem bem <3 
 
Um beijo,
Volto logo.
 
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*Um rascunho perdido*
(textos meus escritos em algum lugar do passado) 
Dezembros festivos
 
- Amigdalite aguda.
 E qual é a causa doutor?
- Dezembros festivos. Felicidade pós-novembro. Coração que voa.
(Não. Ele não disse isso. Mas deveria.)
Foi chuva, com sol, frio e corres. E vírus. E bactérias. 
E a falta de guarda-chuva no último domingo.
- Cefadrolixa. Tome um comprimido a cada 12 horas.
Eu acordei ruim. Mas acordar ruim em dezembro ainda te faz acreditar em própolis, mel, reza, cachaça e antiflamatórios. Dormi ruim. E acordei com um fecho no pescoço. Eram duas facas na garganta cortando cada saliva, água e vento que cruzava. Eu precisava de uma receita. Eu precisava de um antibiótico. E este é o momento em que você reprime quem inventou o antibiótico com receita. E reprime ainda mais quem inventou o antibiótico com receita em São Paulo. E se desfaz de quem inventou o antibiótico com receita em São Paulo em dezembro. E não acredita que alguém possa ter inventado o antibiótico com receita em 
São paulo em dezembro, quando os médicos não tem mais horários, e quando o que você mais quer é tomar depressa o antibiótico e voltar a festejar.

Consegui marcar com o Dr. Mitri. Para chegar até à sala do seu consultório era preciso pegar um elevador com ar condicionado. Por que colocam ar condicionado em um elevador que te leva ao otorrinolaringologista? 
Ninguém com nariz, ouvido ou garganta em chamas vai gostar de um ar condicionado nesse momento. Me deixe no calor, Dr. Mitri. Desative essa caixa gelada.
– Já tem cadastro?
Não – balancei a cabeça. (E também não quero fazer)
(Eu não disse isso. Mas queria.)
Porque soletrar seu nome, CEP e endereço quando se está rasgando por dentro, é de arrebentar.
Me deixe apenas sentadinha aqui. E avise ao Dr. Mitre que eu só preciso de uma receita.
– 300 reais.
Tem certeza? Ele nem precisa me olhar. São os dezembros festivos. Diga a ele.
 
Esperei na típica sala de consultório.
Revistas velhas, plantas de plásticos e vale a pena ver de novo na tv.
E ele veio.
Dr. Mitri é simpático. E cobra caro pelos seus 15 minutos.
– O que está acontecendo?
Preciso de um antibiótico, Doutor. Estou morrendo.
– Deixa eu ver isso. Amidaglite Aguda. Cefadrolixa vai te ajudar. E nimesulida pra dor.
Ótimo. Te amo. Pra sempre.
Mas eu nunca tive isso.
– É o estresse pós-trabalho e esse tempo seco. É São Paulo que não ajuda.
Ajuda sim, doutor. Estou festejando por dentro. Só preciso de uma receita.
Tchau.
Tchau.
 
Descobri que quando se está com amigdalite aguda, sente-se fome quando não consegue comer.
Na frente do consultório tinha uma padaria – repleta daqueles mini panetones de fabricação própria, com a uva passa caseira e a massa grossa que rui a garganta mas abraça o estômago. E este, aprendi, é o verdadeiro espírito gordo. É aquele que vai à padaria antes da farmácia.
Segurei a receita de um lado e o panetone de outro. Andei mais um bocado, entrei na farmácia e flutuei. Entrar numa farmácia com uma receita de antibiótico quando se está a ferver a faringe, é como encontrar um mc donald’s no meio da estrada – voltando da praia.
– Já tem cadastro?
Sim. Sou cadastrada no mundo. E tenho receita.
(Não disse isso. Mas enfim. Não quero o cartão da loja)
Consegui os remédios. E me vi voltando pra casa tentando comer o panetone de um jeito que ele não precisasse passar pela garganta. Arrumei uma maneira que foi mastigá-lo 52 vezes e engolir a pasta de olhos fechados para que a dor sofresse sozinha. É péssimo comer quando não se pode comer. Como é bom aproveitar uma massa e um vinho quando se tem garganta. Neste momento, eu só tinha um panetone seco e um estômago faminto.
Pelo menos agora já estava alimentada e só precisava chegar em casa para mergulhar num copo d’água.
 
Cheguei no meu prédio e o porteiro pediu para eu esperar.
– Tem uma encomenda pra você. Espera?
Eu não posso, não. Eu não posso mais não.
Corri.
Abri a caixa do remédio. Comprimidos laranjas.
O primeiro antibiótico da minha vida. O melhor presente de natal naquele momento.
Tomei uma cápsula e vi estrelas.
Porque quando se toma um antibiótico com amigdalite aguda, meus amigos, a vida é maravilhosa.
Dezembros festivos.
Me esperem.
 

Clara Vanali

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Sobre

 

Sou jornalista mas penso que ser jornalista é mais sobre investigar. Ser escritora é mais sobre observar. Aqui, me sinto mais escritora do 

que jornalista. Prazer, Clara ;)