14 #décimo 
quarto gole
 
Oi, tudo bem por aí?
Bora pro décimo quarto gole? 
(esta newsletter está especial pra mim, certamente uma das minhas favoritas, preciosa demais em sensibilidade)
 
A pandemia levou muitas coisas. E muitos amigos também. Nesses 2 anos fiquei tanto tempo sem falar com algumas pessoas que eu acho que elas ficaram lá. No espaço-tempo da pandemia. Seguiram um outro rumo, mudaram de cidade e por algum outro motivo a gente se perdeu. Disso tudo, só sobrou quem realmente compartilha uma profundidade de laço que resistiu a ausência desses dois anos. E é nessa que a gente percebe que tem poucos amigos. Sobraram quantos? 2 ou 3?
 
Um dos meus amigos que foi pra longe foi o Du - inclusive já indiquei a newsletter dele aqui. Eduardo Lemos é jornalista, se mudou pra Londres com sua companheira no meio da pandemia e é um daqueles amigos que realinha a mesma sintonia que a minha em minutos de conversa. Dito isso, escrevi um e-mail (ter newsletters faz a gente voltar a gostar de coisas antigas, como e-mails) perguntando se ele toparia responder 5 perguntinhas para eu publicar aqui. A minha curiosidade é sobre como está a vida dele morando em Londres.

Nunca comentei aqui mas tenho um flerte por morar em outro país. Não fico romanceando, juro. Acho o Brasil maravilhoso - apesar dos pesares, governo e afins. E embora imagine os perrengues de começar do zero num lugar que não fala a minha língua, gostaria de ainda nesta vida, ter a oportunidade um dia ir. De me dar a chance de construir laços com outras pessoas em outras calçadas. A vida é curta (ou longa demais) pra gente ser solitário em São Paulo. 
 
Então chega de papo porque a riqueza desta newsletter está nas respostas do Eduardo, que abriu gentilmente seu coração em linhas sinceras, sem floreios e sem fazer da experiência um mundo de fadas, e sim um aprendizado diário. Vale muito a pena navegar em suas respostas, mesmo que você não tenha a menor intenção de fazer as malas. Seguem (grifei em azul as partes que eu mais gostei e peço atenção especial à resposta 4): 
 
1. Imagino que você já estivesse pensando em morar em Londres há um tempo. Mas quando foi a decisão final? Aquele momento de acordar um dia e pensar: preciso realmente ir. 
 
Eu acho que foram dois momentos: o primeiro quando visitei a Europa pela primeira vez. Era 2014, eu tinha 29 anos e passei um mês viajando com meu irmão, que havia acabado de se mudar para Londres. Voltei para o Brasil com a ideia de que um dia eu gostaria de viver um período aqui. Nos anos seguintes, tive a sorte de vir pra cá mais algumas vezes, esse sentimento foi crescendo, e ganhou força extra quando descobri que era possível requerer a cidadania italiana por parte da minha mãe.
 
O segundo momento foi na pandemia. Eu e a Ju, minha companheira, já tínhamos definido que viríamos morar na Europa em algum momento de 2021, mas quando a pandemia bateu, a Ju perdeu a maioria dos trabalhos dela, e eu também. A pausa obrigatória da pandemia nos permitiu pensar, conversar, chegamos a por uma lousa enorme no meio da sala e desenhar os diversos cenários. Em algum dia de abril de 2020, tomamos a decisão de ir embora. Daí em diante foi tudo muito rápido: em junho de 2020 já tínhamos desmontado a nossa casa e nos mudamos para um apartamento temporário. Nos casamos no civil no final de agosto, e duas semanas depois pegamos o voo pra Londres. 
 
2. Você sente falta do Brasil? Se sim, do quê?
 
Tô aqui escrevendo e apagando… Talvez porque existam diversas maneiras de responder a esta pergunta. Tenho saudade da minha família e dos amigos, claro. Do ponto de vista da vida cotidiana, sinto falta de beber no boteco, comer na padaria, encontrar um conhecido sem querer na rua. Queijo mineiro. Suco de acerola. Ir aos shows dos artistas que admiro, ou dos artistas amigos. Falar português.
 
Mas, sendo muito honesto, ainda não sinto aquela vontade incontrolável de voltar para o Brasil. A gente estava bastante desanimado por aí, a despeito dos nossos privilégios. A política de destruição do atual governo é um motivo; outro era perceber que a gente estava ficando doente, nossos amigos estavam/estão adoecendo, porque no Brasil a gente vai naturalizando o caos, a dor, o injustificável, mas obviamente isso tem um preço, e esse preço simplesmente ficou alto demais. Então é difícil sentir saudade disso. Tanto que a nossa mudança, ao fim, foi muito mais um "primeiro vamos sair, depois a gente vê o que faz" do que um plano elaborado. 
 
3. Como você está se sustentando financeiramente? Digo, você continua trabalhando para o Brasil ou está trabalhando em Londres? 
 
Eu comecei me sustentando pelo trabalho que faço no Brasil, e que continuo fazendo. Esse foi um privilégio muito grande, poder chegar aqui sem precisar sair correndo atrás de emprego, até porque o Reino Unido estava num lockdown severo em dezembro de 2020, o que tornaria essa busca muito mais complexa do que o normal. 
 
No começo foi ótimo pra poder chegar sem sustos, mas demorei um pouco pra entender que viver aqui/trabalhar pro Brasil era uma ideia ruim. Primeiro pela própria parte financeira: 1 libra está custando inacreditáveis 8 reais. Tinha o lance do fuso horário também (às vezes estamos 3, às vezes 4 horas na frente), o que me fazia trabalhar até meia noite quase todos os dias. E, por fim, a cidade começou a reabrir, as coisas rolando e eu em casa trabalhando para outra realidade. Num determinado momento, eu me senti tão perdido com tudo isso que temi não conseguir ficar, pensei em voltar. Era como se Londres tivesse se tornado a minha vida virtual, impalpável e distante; e o Brasil, a 9.000 quilômetros físicos de mim, ainda era a minha vida real. Não fez bem pro meu estômago. Então, comecei a me organizar para ter mais tempo livre e finalmente procurar trabalho aqui. 
 
Há 3 meses, comecei a trabalhar na lojinha do Royal Academy, um museu de 252 anos (!) que fica no centro de Londres. Vou duas ou três vezes por semana, e tem sido o melhor lugar para fazer novos amigos (meus mais chegados são imigrantes do Sri Lanka, Itália, México, Alemanha, Hungria), treinar o inglês e me sentir parte do fluxo cultural e social da cidade. Tô aprendendo muito, me sinto uma criança nos seus primeiros dias de escola. 
 
E, mais recentemente, comecei a trabalhar 1 vez por semana numa produtora de shows daqui, o que está sendo muito animador, já que a música é a minha área de atuação. Aqui na Europa, é mais difundido o modelo de trabalho 
part-time (em que você trabalha 20 horas semanais) ou casual, em que você decide quando está disponível para trabalhar (é o meu caso no museu). 
Isso tem sido essencial para que eu case os trabalhos daqui com os do Brasil, e esse equilíbrio me parece o mais saudável neste momento. 
 
4. O que é mais difícil na adaptação? Quais são as flores e quais são os espinhos?
 
Eu acho que cada um vai ter as suas próprias flores e espinhos neste processo. No meu caso, o mais difícil tem sido a língua, embora eu tenha um domínio regular do inglês. Eu levo longos minutos pra escrever um email simples, estou sempre em dúvida se o jeito que eu estou escrevendo/falando está realmente correto e ficar 24h fazendo esse esforço mental é cansativo. Conviver com a língua é um exercício, e como tal, requer energia, tanto que de vez em quando a gente gosta de ver filmes com legenda em português só pra "descansar". Conforme a vida aqui vai tomando forma, eu quero me expressar mais e mais, mas a barreira da língua muitas vezes se impõe. Existe um meme que diz "você não sabe como eu sou inteligente em português!", o que eu acho sensacional, porque muitas vezes eu me sinto uma criança falando. Para quem trabalha com escrita, comunicação e cultura, como é o meu caso, é um pouco frustrante até.
 
Ao mesmo tempo, esse é um espinho que vem com uma flor muito rica, que é o fato de você aprender a existir em outra língua. É mágica a sensação de entrar numa livraria daqui e perceber que você agora pode usufruir de uma imensidão de conhecimento que antes não parecia tão possível. Esses dias pela primeira vez gravei um áudio de trabalho todo em inglês. Depois que a pessoa respondeu mostrando que entendeu tudo que eu falei, como seria em qualquer conversa banal que eu teria no Brasil, eu comemorei como um gol em final de campeonato. Não dominar a língua por completo me faz comemorar cada pequena conquista, o que é um bom exercício prático de humildade, além de estar me ensinando o valor de falar pouco. Escuto muito mais aqui, e tô me sentindo mais calmo e atento por causa disso. Então, de certa forma, as flores e espinhos se confundem.
 
Em termos mais práticos do dia a dia, acho que o mais difícil é o começo. Toda a burocracia para chegar - vistos, passaportes, cidadanias, seja qual for o caso - é sempre desanimador. Uma vez aqui, começam outros desafios: alugar um lugar pra morar, entender como funcionam as contas de energia, gás, água, telefone, tudo é diferente e parece extremamente confuso no início. Entender qual supermercado é melhor e mais barato, compreender de fato quanto valem as coisas que você está comprando (tem coisas que eu considerava super baratas no começo, e que hoje eu acho caríssimas). Como tudo na vida, a gente demora pra pegar o jeito.   
 
Um outro lance é o trabalho, dependendo da área que você atua, arrumar emprego pode ser mais simples ou mais complicado. Do que eu tô vendo aqui, tirando áreas técnicas, em geral a experiência não europeia conta pouco, então quem já está caminhando há um tempão na profissão precisa aceitar que será preciso dar uns passos pra trás na carreira antes de voltar para o mesmo lugar.
 
Mas devo dizer que os meus espinhos quase não fazem corte quando me comparo com outros imigrantes. Ter um trabalho no Brasil, ter um passaporte que abre portas, ter família aqui… São imensos os meus privilégios. Esses dias eu estava estudando inglês e aprendi a diferença entre as palavras "settled" - que usamos quando alguém decide, por livre e espontânea vontade, sair do seu país e viver em outro lugar, como é o meu caso - e "resettled", que é usado para designar a mesma coisa, apenas com a diferença de que, neste caso, você foi forçado a fazer isso. Ou seja, somos todos imigrantes até que eu te pergunte como você veio parar aqui. Há uma diferença enorme nas histórias de imigração que tenho testemunhado, e certamente a minha é a das mais tranquilas.
 
Aliás, aprendi muito rapidamente que meu negócio aqui é com os imigrantes, é quando estou com eles que consigo me sentir acolhido, compreendido, aceito. Suas histórias me interessam e me alimentam. Isso foi algo completamente inesperado, aos 35 anos eu descobri que faço parte de um time, o time dos imigrantes, e isso é o maior presente que esta mudança me deu. 
 
5. Que conselho você daria para quem quer, um dia, morar fora do país?
 
Eu não sei se o meu tempo aqui (1 ano e 2 meses fora, 11 meses em Londres) me credencia muito pra dar conselhos. Eu ainda sinto como se eu tivesse acabado de chegar. E, como eu disse ali, as razões que levam as pessoas a deixarem seus países podem ser muito distintas. Por exemplo, eu acho que não saberia dar conselhos para pessoas muito ricas, ou pra quem gosta de conquistar as coisas muito rapidamente, porque sinto que a minha experiência aqui não tem nenhum valor para estes perfis.
 
Dito isso, acho que é importante se você tiver alguém conhecido (um amigo, familiar, colega de trabalho) vivendo na mesma cidade. Alguém que você possa recorrer, tirar dúvidas, trocar ideias, não se sentir tão sozinho enfrentando tantas novidades… Não é uma dica, mas é algo que foi essencial para que o nosso pouso aqui fosse mais leve.
 
E, talvez, eu pudesse sugerir que, quando você estiver pensando em se mudar para qualquer lugar do mundo, não fique preso só nas razões 'materiais', ou seja, 'aprender inglês', 'viver numa cultura diferente', 'fazer um mestrado' etc. Tente achar dentro de si mesmo as razões mais pessoais, que independem dessa materialidade. Porque, ao menos pra mim, são elas que me ajudam a não desistir nas minhas primeiras dificuldades, e com o passar do tempo, são elas que dão contornos mais reais para a experiência toda.
 
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Se você curte receber essa newsletter que chega todas às terças, manda este link para alguém que também possa se identificar com ela. Você também pode responder este e-mail dizendo o que achou da news desta semana, vou amar saber. 
 
Mudando de assunto.
Nas minhas andanças pelo Youtube, trombei ontem com isto aqui, do La La Land. E não preciso dizer mais nada. Foi gostoso demais rever essa cena do filme que tem uma das trilhas sonoras e trabalho de iluminação mais bonitos que eu já vi. Aproveitem. 
 
É novo ou nova por aqui? Deixo o Décimo Primeiro Gole pra você curtir. 
 
Um beijo,
Volto logo.  
 
 
 
*Um rascunho perdido*
(textos meus escritos em algum lugar do passado) 
 
"Não tínhamos Netflix em meados de 2003 e 2004. A gente se ligava no fixo e essa era a nossa distração. E então falávamos por horas até alguém gritar para desligar. 
Éramos íntimos das pessoas. E digo isso sem querer idealizar a era pré-digital, mas apenas sentindo a falta de ser próxima. De termos uns aos outros de novo.
Às vezes no sofá, embaixo das cobertas, com a melhor programação do mundo no controle remoto, ainda sinto. O vão. De não ter mais aquilo.
Quem dera o celular nos fizesse conversar". 
 

Clara Vanali

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Sobre

 

Sou jornalista mas penso que ser jornalista é mais sobre investigar. Ser escritora é mais sobre observar. Aqui, me sinto mais escritora do 

que jornalista. Prazer, Clara ;)