82 #octogésimo 
segundo gole
 
Oi queridos, tudo bem?
 
Saí do trabalho e fui à banca de jornal comprar uma revista. Às vezes eu sinto falta da falta de opção dos anos 90. Não quero saber de mil sites à disposição pra acessar notícias. Não quero entrar no celular e me perder ali dentro. Só quero abrir uma revista e ler a entrevista com a Angélica completando 50 anos. 
Dezembro me leva para uma época incrível de falta de opções na casa da minha avó. A nossa única possibilidade de programação de fim de tarde era tomar um banho e ficar na calçada da sorveteria dela, vendo o movimento passar. Não tínhamos outra coisa a fazer. Era isso. Ficarmos juntos tomando sorvete de crocante com flocos. A gente foi muito feliz sem opções.
Fico pensando hoje nas infinitas opções dos aplicativos de relacionamento. Lá você encontra todas as opções de solidão. É só passar pra direita ou pra esquerda. Tanto faz. Sozinha da mesma forma. 
 
                                                      …
 
Na sala de espera da minha última angiotomografia, tinha um homem ao meu lado, com seus 60 e poucos, se preparando para fazer uma biópsia da próstata. A enfermeira chegou e disse:_senhor, tire tudo o que estiver vestindo de metal, aliança, objetos, etc.
e ele:_mas e meu escapulário? não posso fazer a biópsia sem meu escapulário. 
_tá bem, vou avisar o médico que você vai ficar com o escapulário.
Olhando para aquele homem, que estava com muito medo de que a biópsia apresentasse um resultado ruim, pensei em dizer:_senhor, o escapulário não vai te salvar. 
                                                         
 
Meu pai me perguntou o que eu faria se tivesse a idade dele, 70 anos - como se esperasse o conselho que daria o direcionamento dos seus próximos anos de vida. Achei bonitinha a pergunta porque o mais esperado seria eu perguntar o que ele faria se tivesse os meus 36. Pensei um pouco e respondi: acho que com o tempo livre que você tem…viajar…eu viajaria muito. Ele me olhou como se não estivesse satisfeito com a resposta e argumentou: mas viajar pra ficar pegando aeroporto lotado e lugares turísticos cheios de gente? E então pensei melhor no que de fato eu faria aos 70 e respondi: ficar em paz, onde quer que eu estivesse. E aí ele sorriu, como se fosse essa a resposta esperada, já que ele tem se sentido bem em viver os seus 70 comendo uma comida boa, fazendo seus exercícios físicos e marcando cafés com amigos em lugares charmosinhos de araçatuba mesmo, cidade onde vive.
Pensando bem…é crime querer ficar em paz aos 36 também?  
 
                                                         …
 
Dezembro em São Paulo é calor. Sei que não posso falar em voz alta que eu gosto do calor, mas eu gosto. Tive a sensação em 2023 que passei frio todos os dias nessa cidade. Então chegou o calor e eu só agradeci por poder ligar o ventilador pra dormir com uma camisola fresca e velhinha que deixa as pernas de fora. Desculpa mundo, eu tenho consciência do aquecimento global, mas tô aqui quietinha curtindo um vento quente no rosto porque, pela primeira vez no ano, não tenho que sair levando um casaco na mochila. Adoro lavar a cabeça e não ter que secar com o secador. Colocar uma blusa de alcinha. Beber água de coco bem gelada. Dezembro me leva pros finais de ano na Editora Abril, quando a gente saía do expediente e ia tomar uma cerveja ali no Coqueiros, do lado do metrô Pinheiros. Coqueiros é o bar pé sujo mais bem sucedido da história. Tem umas 20 unidades pela capital. Talvez mais. Mas o fato é que, às vezes, dá saudade de trabalhar de novo no mundo corporativo só pra ter mais gente na mesa ao lado e, ao bater 18h, descer todo mundo junto pra beber uma em pé no Coqueiros.  
 
 
É impossível não fazer uma retrospectiva mental a cada Natal. A gente apelidou o 2023 aqui em casa como o ano em que não vale a pena ver de novo. 
Ninguém passou ileso. Eu tive a embolia, minha irmã teve depressão, meu sobrinho de cinco anos ficou dias na UTI com uma inflamação grave, minha mãe operou o pé pela segunda vez, meu pai pegou covid pela primeira vez, minha outra irmã pegou covid pela quarta vez e, pra fechar o semestre, meu cunhado quebrou o joelho na semana passada. Esse foi o ano em que a gente passou os dias tentando vencer cada surpresa que aparecia, agradecendo às noites em que a gente ia dormir com saúde. Não consigo pensar em outra palavra que não seja resiliência. Resistência. Amor. A gente seguiu, com o perdão de todos os clichês, porque tivemos um ao outro para não abandonar os pratinhos e se jogar do barco. Não foi um ano leve pro mundo, principalmente. Meu carinho a você, leitor/leitora, que se superou por aí e teve a família para abraçar. Meu beijo apertado a você que passou por coisa muito pior e conseguiu ficar bem. Esse foi mais um ano que a gente venceu.  
 
Estamos vivos. 
Feliz ano-novo! 
 
Fiquem bem <3 
 
*na foto dessa edição, uma lembrança dos anos 90, na minha antiga casa em araçatuba, época em que fazíamos árvores de natal com pinheiros de verdade. adoro tudo nessa foto. o vaso coberto com papel dourado. o sofá estampado. e quando foi que a gente parou de usar tiaras?
 
Todos os goles passados estão disponíveis para leitura lá: www.claravanali.com.br 
Em especial, você pode gostar do gole 60.
 
Um beijo,
Volto logo.
 
 
Raschunho perdido
Image item
1993. 
Eu e minha mãe em Catanduva, com meus avós na calçada,
 vendo o movimento passar.

Clara Vanali

Instagram
Facebook
 
Sobre
 
Sou jornalista de formação, tenho uma produtora de vídeos como ocupação, e aqui, nestes goles, eu apenas escrevo. 
 Prazer, Clara Vanali ;)